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Os discursos de ódio, a dificuldade de interpretar um texto, o desaparecimento das metáforas, a incompreensão das ironias, a divulgação de notícias falsas (ou manipuladas) e o desrespeito à Constituição são fenômenos que podem ser explicados a partir de uma única causa: o empobrecimento subjetivo.

Empobrecimento que se dá na linguagem. Alguns chegam a falar na “arte de reduzir cabeças”, outros no encolhimento das mentes.

A linguagem, e isso já foi dito antes, sempre antecipa sentidos. Uma linguagem empobrecida antecipa sentidos empobrecidos, estruturalmente violentos, pois se fecham à alteridade, às nuances e à negatividade que é constitutiva do mundo e se faz presente em toda percepção da complexidade.

Sentidos empobrecidos que não se prestam à reflexão e que são funcionais à manutenção das coisas como estão.

A linguagem empobrecida é resultado e atende à razão neoliberal, a esse modo de ver e atuar no mundo que transforma (e trata) a tudo e a todos como mercadorias, como objetos que podem ser negociados.

A lógica das mercadorias esconde o negativo e o complexo enquanto apresenta discursos que mostram as coisas existentes como pura positividade e simplicidade.

Não é por acaso que para atender ao projeto neoliberal, que poderíamos resumir como a total liberdade voltada apenas para alcançar o lucro e aumentar o capital, cria-se uma oposição à mentalidade subjetiva, apaixonada, imaginativa e sensível.

Segundo o mantra neoliberal, não há que se sensibilizar com a violação a direitos fundamentais diante dos interesses do mercado e da circulação do capital. Há uma recusa a qualquer compaixão ou empatia. A proposta é de que se esqueça como lidar e reagir ao sofrimento e a dor.

Na era do empobrecimento da linguagem, não há espaço para a negatividade que é condição de possibilidade tanto da dialética quanto da hermenêutica mais sofisticada. Tudo se apresenta como simples para evitar conflitos, dúvidas e perspectivas de transformação.

Aposta-se em explicações hipersimplistas de eventos humanos, o que faz com que sejam interditadas as pesquisas, ideias e observações necessárias para um enfoque e uma compreensão necessária dos fenômenos.

Correlata a essa “simplificação” da realidade, há a disposição a pensar mediante categorias rígidas. A população é levada a recorrer ao pensamento estereotipado, fundado com frequência em preconceitos aceitos como premissas, que faz com que não tenha a necessidade de se esforçar para compreender a realidade em toda a sua complexidade.

Quem se afasta do pensamento raso e dos slogans argumentativos, e assim coloca em dúvida as certezas que se originam da adequação aos preconceitos, torna-se um inimigo a ser abatido, isso se antes não for cooptado.

Nesse sentido, pode-se falar que o empobrecimento da linguagem gera o ódio direcionado a quem contraria essas certezas e desvela os correlatos preconceitos.

É também o empobrecimento da linguagem que reforça a dimensão domínio-submissão e leva à identificação com figuras de poder (“o poder sou Eu”).

Pense-se em um juiz lançado no empobrecimento da linguagem, não há teorias, dogmática, tradição ou lei que sirva de limite: a “lei” é “ele mesmo” a partir de suas convicções e de seu pensamento simplificado.

Em outras palavras, o empobrecimento da linguagem abre caminho à afirmação desproporcional tanto da convicção e de certezas delirantes quanto dos valores “força” e “dureza”, razão pela qual pessoas lançadas na linguagem empobrecida sempre optam por respostas de força em detrimento de respostas baseadas na compreensão dos fenômenos e no conhecimento.

Essa ênfase na força e na dureza leva ao anti-intelectualismo e à negação de análises minimamente sofisticadas.

A razão neoliberal se sustenta diante da hegemonia do vazio do pensamento expressa no visível empobrecimento da linguagem, da ausência de reflexão e de uma percepção democrática de baixíssima intensidade.

Qualquer processo reflexivo ou menção aos valores democráticos representam uma ameaça a esse projeto de mercantilização do mundo.

Não por acaso, a razão neoliberal levou à substituição do sujeito crítico kantiano pelo consumidor acrítico, do sujeito responsável por suas atitudes pelo “a-sujeito” que protagoniza a banalidade do mal, que é incapaz de refletir sobre as consequências de seus atos.

Pode-se, então, identificar a sociedade que atende à razão neoliberal como uma sociedade do pensamento ultra-simplificado.

A exigência de simplificação tornou-se um verdadeiro fetiche e um tema totalizante. Como em toda perspectiva totalizante, há uma tendência à barbárie: aos que não cederam ao pensamento simplificado, reserva-se a exclusão e, no extremo, a eliminação.

As coisas se tornam simples ao se eliminar qualquer elemento ou nuance capaz de levar à reflexão.

A simplicidade neoliberal exige que se elimine toda negatividade e as diferenças que não podem ser objeto de exploração comercial, fazendo com que a coisa se torne rasa, plana e incontroversa, para que se encaixe sem resistência ao projeto neoliberal.

A simplicidade leva a ações operacionais, no interesse do capital, que se subordinam a um governo passível de cálculo e controle.

A simplicidade se afasta da verdade e mostra-se compatível com a informação (também simplificada).

A verdade, por definição, é complexa, formada de positividades e negatividades, a ponto de não ser apreensível por meio de atividade humana. A verdade nunca é meramente expositiva.

A informação é construída e manipulada segundo a lógica das mercadorias. A informação simplificada recorre aos preconceitos e as convicções dos destinatários para se tornar atrativa e ser consumida.

Da mesma maneira, a simplicidade neoliberal também impede o diálogo, que exige abertura às diferenças, para insistir em discursos, adequados ao pensamento estereotipado e simplificador, verdadeiros monólogos, por vezes vendidos como “debates”.

O ideal de comunicação na era da simplificação neoliberal parte do paradigma do amor ao igual. A comunicação ideal seria aquela entre iguais, na qual o igual responde ao igual e, então, se gera uma reação em cadeia do igual.

É esse amor ao igual, avesso a qualquer resistência do outro, o que só é possível diante da linguagem empobrecida, é que explica o ódio ao diferente, a quem se coloca contra esse projeto totalizante e a essa reação em cadeia do igual.

Vale lembrar que Freud já identificava nos casos de paranoia um amor ao igual (amor homossexual) que não era reconhecido e se tornava insuportável a quem amava.

Esse ódio, que nasce do amor ao igual e da comodidade gerada pelo pensamento simplificador, direciona-se à alteridade que retarda a velocidade e a operacionalidade da comunicação entre iguais, coloca em questão as certezas e desestabiliza o sistema.

Quem ousa ser diferente (e pensar para além do pensamento simplificador autorizado), deve ser eliminado, simbólica ou fisicamente, em atenção ao projeto neoliberal.

*Rubens Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ.