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Qual o papel dos debates em uma eleição presidencial?

Por Ângela Carrato*, especial para o Viomundo

O debate de ontem mais uma vez não cumpriu o que deveria ser a sua função primordial: auxiliar no voto consciente.

Exceto o fato de que os dois candidatos, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro, poderem se movimentar pelo espaço enquanto perguntavam ou respondiam um ao outro ou às questões dos jornalistas, o que se viu foi mais do mesmo.

Bolsonaro teve mais um palanque, chancelado pela mídia, para mentir com a maior cara de pau e Lula tentou recolocar a verdade nos trilhos.

É importante lembrar que entre as principais funções dos meios de comunicação estão informar, esclarecer, tirar dúvidas e educar.

Apesar destas atribuições clássicas, sabidas e repetidas em toda a bibliografia sobre o assunto no mundo e aqui, os proprietários da mídia corporativa brasileira insistem em desconhecê-las e seguem com seus noticiários falaciosos e promovem debates de olho apenas em seus próprios interesses, nada comprometidos com o delicado momento em que vive o país.

Daqui a 13 dias, os brasileiros estarão escolhendo não apenas quem vai conduzir os seus destinos nos próximos quatro anos. O que está em jogo é se o atual golpe em curso vai se aprofundar ainda mais ou terá ponto final.

Os “barões” da mídia corporativa, no entanto, continuam tratando esta eleição como se acontecesse dentro dos marcos da plena democracia e como se os dois candidatos disputassem em iguais condições.

Um fato que não se pode perder de vista é que estamos longe das chamadas instituições funcionarem plenamente e isso, em muito, se deve à atuação da própria mídia.

Nunca é demais lembrar que, em 2016, a mídia corporativa esteve na linha de frente do golpe que derrubou a presidenta legitimamente eleita, Dilma Rousseff, sob o falacioso argumento de crime de responsabilidade.

As acusações contra Dilma já foram consideradas improcedentes pelo próprio Judiciário, mas a mídia segue ignorando o fato.

O mesmo se dá em relação ao ex-presidente Lula, cujas absurdas acusações formuladas pela Operação Lava Jato o levaram a ser condenado, sem provas, e a cumprir 580 dias de prisão.

Todas as condenações contra Lula foram revogadas e Sergio Moro, que as conduziu, foi considerado pelo STF como “juiz parcial”.

A mídia corporativa brasileira segue escondendo esse fato. Para quem não sabe, parcial é a pior condenação que um juiz pode receber.


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O descaramento e a cumplicidade da mídia para com Moro é tamanho, que sua presença entre os “assessores” de Bolsonaro no debate de ontem, ao invés de gerar estranhamento e críticas, foi naturalizada. Pior: ao final, os jornalistas disputavam entrevistá-lo para saber sua opinião sobre o desempenho de Lula!

A “imparcialidade”

Desde 1960, com a eleição para a Casa Branca sendo disputada pelo republicano Richard Nixon e o democrata John Kennedy, os debates presidenciais nos Estados Unidos ganharam a TV e não saíram mais. Com atraso de décadas, isso também acontece no Brasil.

Na época, apesar de Nixon ser um experiente político (duas vezes vice-presidente), o jovem senador Kennedy foi apontado como vencedor, supostamente por melhor dominar os recursos televisivos.

Enquanto Nixon se mostrava cansado e irritadiço, seu opositor esbanjava dinamismo e ironia.

Essa avaliação, quase uma lenda urbana, volta e meia repetida, para esconder os verdadeiros aspectos que se mostraram essenciais para a vitória de Kennedy.

Além de ele pertencer a uma rica e influente família, o contexto era profundamente desfavorável aos republicanos e isso vinha sendo mostrado pela mídia no noticiário, nos comentários e artigos que publicava.

Eram diárias, por exemplo, as manchetes dando conta dos graves conflitos envolvendo brancos e negros em função da segregação racial e também da indignação dos jovens com a Guerra no Vietnã, com a Casa Branca sendo acusada de meter o bedelho onde não lhe dizia respeito.

Além de cumprir o papel que dela se esperava, a mídia estadunidense, de lá para cá, tem histórico de cobrir os temas que interessam à maioria da população com eficiência e faz questão de se posicionar nas eleições. Longe dela fingir imparcialidade, como faz a mídia brasileira, especialmente no que diz respeito aos temas internos.

Em editoriais, no início das campanhas, influentes publicações como os jornais The New York Times e The Washington Post anunciam qual candidato apoiam.

Isso não significa que deixem de cobrir, com isonomia, no noticiário e em longas reportagens, inclusive investigativas, a campanha eleitoral.

Mais ainda. Os estadunidenses nunca permitiram que seus debates presidenciais fossem conduzidos por um grupo privado de mídia e que eles acontecessem na sede desses grupos e com regras definidas por eles.

Essas atitudes continuaram valendo mesmo sob um governo de extrema-direita como o de Donald Trump.

A maioria da mídia corporativa estadunidense deu, inclusive, uma lição para o mundo ao desligar microfones e parar a transmissão de entrevistas com Trump a partir do momento em que ele passava a mentir descaradamente, a atacar as instituições e estimular a violência e o ódio.

A mídia brasileira, que diz se espelhar na estadunidense, finge desconhecer essas lições e segue defendendo os seus interesses e os interesses dos seus anunciantes (a classe dominante) acima dos interesses da população brasileira e do próprio país.

No Brasil, a mídia corporativa nunca cobriu o que efetivamente aconteceu no governo Temer e o que está em curso com Bolsonaro.

A dita Reforma Trabalhista de Temer, uma medida que retirou direitos fundamentais dos trabalhadores, foi apresentada como “oportunidade para as pessoas se tornarem empreendedoras e conquistarem o próprio negócio”.

Já a dita Reforma da Previdência só foi aprovada porque a mídia, em apoio a Bolsonaro e aos seus próprios interesses, fez terrorismo, anunciando que sem ela, a Previdência poderia quebrar e todos ficarem sem aposentadoria.

Some-se a isso que o lado dos trabalhadores e mesmo os especialistas que não se filiavam a estas propostas neoliberais foram excluídos do noticiário. Publiquei, na época, aqui no Viomundo, detalhado artigo sobre o assunto.

Enquanto a mídia internacional define Bolsonaro pelo que ele realmente é — um presidente de extrema-direita, que, como Trump, governa à base da mentira e do estímulo ao ódio —  aqui, no Brasil, a mídia corporativa o trata como se ele fosse um governante normal, que respeita as instituições, as pessoas e não se vale dos mais graves e criminosos expedientes para tentar se reeleger.

A título de exemplo, as TVs e emissoras de rádio da mídia corporativa brasileira não fizeram uma única reportagem esclarecendo o que é o Orçamento Secreto, o maior escândalo de corrupção da história brasileira, colocado em prática por Bolsonaro e pelos parlamentares que o apoiam.

O resultado foi a eleição do mais conservador Parlamento que se tem notícia desde a redemocratização de 1989.

Apenas na semana passada, pela primeira vez, o Jornal Nacional tratou do assunto com a seriedade necessária, mas o estrago já estava feito. Em 3 de outubro foram eleitos, pelos próximos quatro anos, os deputados federais e senadores.

Mais ainda: a mídia, que tanto criticou sem razão o mundialmente admirado e reconhecido Programa Bolsa Família, simplesmente fechou os olhos à compra descarada de votos através da ampliação do número de pessoas e do aumento no valor pago pelo Auxílio Brasil às vésperas da eleição.

O descaramento foi tamanho, que se tornou necessário aprovar até um “estado de emergência”, para que tais medidas não se transformassem em crimes eleitorais.

Se Bolsonaro tivesse preocupação com os efeitos da pandemia sobre a vida das pessoas, o certo seria ter criado esses auxílios em 2020 e não às vésperas da eleição, como agora.

Conivência com mentiras

Daí ser o cúmulo do absurdo, jornalistas e analistas da mídia corporativa brasileira se arvorarem a comentar o resultado dos debates sem levar em conta tais aspectos, como se eles pudessem ser regidos pelas mesmas regras de uma luta de boxe ou uma corrida de cavalos, onde quem vence é o que aplicou golpes mais duros ao adversário ou correu com maior velocidade.

A julgar por estes critérios, programas de governo não fazem a menor falta, a história dos candidatos e práticas de governos não contam e o compromisso com a verdade se torna letra morta.

Mesmo sabendo que a maioria desses jornalistas e ditos analistas reconheceu que foi o ex-presidente Lula quem venceu o debate de ontem ou, na pior das hipóteses, houve empate técnico, alguns pontos essenciais desse debate precisam ser discutidos.

Vamos aos fatos.

O enfrentamento direto entre os candidatos não significa que a mídia possa lavar as mãos e seu compromisso com a verdade factual seja dispensável.

No entanto, foi exatamente o que fez o pool de emissoras integrado pelas TVs Bandeirantes e Cultura, Jornal Folha de S. Paulo e seu portal de notícias, UOL.

Mesmo dispondo dos mais sofisticados recursos para checar em tempo real a veracidade da fala dos candidatos, isso não foi feito.

Bolsonaro pode assim, mais uma vez, mentir e requentar velhas mentiras contra seu adversário sem qualquer constrangimento.

Sem a devida mediação, a mídia corporativa brasileira tem contribuído apenas para confundir e tentar igualar os dois candidatos, que são tão diferentes como água e óleo.

Até aí, nenhuma novidade, especialmente quando se sabe que essa mídia tentou, de toda forma, criar uma “terceira via” nestas eleições. Patrocinou candidatos, mas como nenhum conseguiu emplacar, sua meta agora é igualar Lula e Bolsonaro em aspectos como corrupção, mentiras e baixarias.

No debate de ontem, Bolsonaro não disse uma única verdade sobre seu governo, suas ações e o seu adversário.

A mídia tinha obrigação de recolocar a verdade em seu devido lugar, seja logo após o debate ou no noticiário que a ele se seguiu. Não fez isso e dificilmente o fará.

Por isso, vai aqui a relação que elaborei sobre as principais mentiras ditas por Bolsonaro e que são de fácil comprovação. Basta, como disse Bolsonaro, dar um google.

É mentira que Bolsonaro tenha se preocupado com a pandemia e com a compra de vacinas no momento adequado.

É mentira que Bolsonaro tenha se preocupado com a morte de quase 700 mil pessoas, o segundo maior número de mortes no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, administrado pelo igualmente extremista de direita, Trump.

É mentira que Bolsonaro fez a transposição do rio São Francisco.

É mentira o que Bolsonaro disse sobre a presença de criminosos ao lado de Lula na visita ao Complexo de Favelas do Alemão, no Rio de Janeiro, na semana passada.

É mentira o que Bolsonaro disse sobre Lula ter responsabilidade por Belo Horizonte não dispor de metrô.

No caso específico do metrô, Bolsonaro se valeu de dupla mentira: mentiu ao afirmar que o dinheiro foi desviado por Lula para a construção do metrô de Caracas, capital da Venezuela, e ainda tentou tirar proveito eleitoral ao induzir os eleitores da capital mineira a votarem nele no segundo turno.

Além de ter sido inaugurado em 1983, exatos 20 anos antes de Lula chegar ao poder, o metrô de Caracas não tem qualquer relação com os governos petistas.

Já a ausência de metrô em Belo Horizonte tem relação direta com o domínio que o lobby do transporte coletivo sempre exerceu na política mineira.

O exemplo mais claro disso é que o vice do governador Aécio Neves, em seu primeiro mandato (2003-2006) ter sido ninguém menos do que o poderoso empresário Clésio Andrade, presidente da Confederação Nacional dos Transportes (CNT).

Detalhe: Aécio como o atual governador de Minas, Romeu Zema, apoia Bolsonaro e ambos jogam pesadíssimo para tentar reverter a vitória que Lula obteve no estado.

Quem transformou a Petrobras em vaca leiteira dos interesses dos oligarcas nacionais e internacionais foi Bolsonaro e não Lula, como disse Bolsonaro, sempre se referindo à corrupção supostamente identificada pela Lava Jato na empresa.

O golpe contra Dilma teve exatamente o objetivo de possibilitar o roubo do pré-sal brasileiro por parte dos interesses internacionais, principalmente estadunidenses e ingleses.

Em tempo algum isso foi mostrado pela mídia corporativa brasileira (denúncias de Snowden e reportagens sobre a #VazaJato), que não só apoiou o golpe, como segue defendendo o desmonte da maior empresa brasileira e a sua privatização. Um crime de lesa pátria que essa mídia tenta esconder, fazendo coro com as supostas denúncias do ex-capitão.

É mentira que Lula seja contra a liberdade religiosa como disse Bolsonaro.

Aliás, Bolsonaro e apoiadores, na última semana, protagonizaram dois dos momentos mais lamentáveis contra católicos no país.

Tanto nas comemorações do Círio de Nazaré, em Belém, como na festa da padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida, Bolsonaro tentou usar as solenidades com fins eleitorais e seus apoiadores fizeram arruaças até dentro da Basílica, em Aparecida.

A mídia corporativa, começando pelo Jornal Nacional, da TV Globo, escondeu o fato, mostrando a festa como se ela tivesse transcorrido na mais completa normalidade.

Bolsonaro diz respeitar a família e os valores cristãos e acusou Lula de ser contra esses valores.

Mas foi ele que admitiu que chegou mesmo a “pintar um clima” com meninas venezuelanas, que confundiu com prostitutas apenas por estarem maquiadas e com cabelos penteados.

Aliás, nas entrevistas antes do debate e mesmo depois, não se viu os jornalistas darem o nome aos bois ao “pintou um clima”, ou seja, pedofilia.

Os jornalistas só se referiram ao episódio como o “das meninas venezuelanas”.

Bolsonaro mentiu quando disse que nunca tinha dito que, se reeleito, pretende ampliar o número de integrantes do STF, a exemplo do que fazem ditadores por ele admirados como o da Hungria, Viktor Orbán.

Infelizmente, os jornalistas que cobriram ou supostamente analisaram o debate de ontem preferiram ficar no lengalenga de quem administrou melhor o tempo ou que se mostrou mais desenvolto diante das câmeras.

Alguns chegaram mesmo a cobrar maior agressividade de Lula ao questionar seu adversário, talvez sonhando em aumentar o climão do “espetáculo”. Coisa que, acertadamente, Lula não fez. Esse não seria jamais o papel de um estadista e ele sabe disso.

Uma mídia contra o Brasil

Nos Estados Unidos, Trump foi derrotado. Os assessores que o auxiliaram na tarefa de mentir e de estimular o ódio, a exemplo de Steve Bannon, estão sendo processados e correm risco de pegarem penas exemplares.

Os veículos que apoiaram Trump, como a Fox News, caíram em profundo descrédito e são considerados representantes de uma “realidade paralela”.

O próprio Trump, pelas suas ações de estímulo à invasão do Capitólio, corre o risco de ser igualmente julgado e condenado. Daí o desespero dos seus seguidores em se tratando de tentar reeleger Bolsonaro, a quem consideram principal aliado.

No Brasil, o que se pode dizer da mídia que passa pano para Bolsonaro ou mesmo daquela que o apoia descaradamente, como a TV Record, do bispo-empresário Edir Macedo, o SBT, do Sílvio Santos, cujo genro é o atual ministro das Comunicações ou da Jovem Pan e da CNN local?

O que se pode dizer dos “bravos” jornalistas dessas empresas e de tantas outras que não veem nada demais no que Bolsonaro fez e disse ontem, antes de ontem e desde sempre?

Alguém acredita que participar de debates nestes moldes possa ter alguma relevância para os interesses da cidadania?

Até quando os brasileiros aceitarão uma mídia corporativa que passa pano para um extremista de direita, candidato declarado a ditador, e que trabalha contra o próprio país e a maioria da população?

*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação da UFMG.

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